SINE CERA

Os romanos antigos tinham predileção por estátuas: as residências mais nobres eram adornadas com belas esculturas, sinal de "status", de alto valor social.

Quando algumas quebravam, eram reconstituídas por artistas que usavam um tipo especial de cera e as tornavam perfeitas outra vez. Readquiridas por novos ricos, iam novamente, ocupar lugares estratégicos para enfeitar jardins e entradas de palácios.

A cera, porém, não agüentava as intempéries: chuva, vento, poeira, sol; assim, ia se desgastando, derretendo ou mudando de coloração, deixando em evidência o remendo mal feito.

Os romanos ludibriados aprendiam a escolher as estátuas e a exigir dos vendedores:

-Sine cera !

A expressão chegou até nós como "sincera", isto é, sem cera, sem falsificações. A estátua de Vênus, deusa do Amor e símbolo da beleza, é bi-maneta; lascada e deturpada nos dias de hoje, como o próprio sentimento que representa. Mas, apesar de tão desfigurada, claramente deixa entrever a beleza, a plenitude, a perfeição. Deduzo que o propalado dom do Amor é maravilhoso, incontestável, insuperável, quando encontrado protegido das calamidades da vida e quando esculpido em estado completo, absoluto, por um grandioso artista.

Mas..., perfeito, absoluto, só Deus é...

Pobres de nós, mortais que amamos, escorregando na cera...

Lóla Prata     

 

A IDOSA E A CRIANÇA
Setembro de 1993

Indo, vindo
via poesia,
o partir e o porvir...
   
    idosa amorosa
corpo caindo
vida se esvaindo...
Nos braços, os traços
da pureza...
Por que, no olhar a tristeza?
   
    Ternura, humano calor,
mãos sobre mãos,
gesto vivo de amor...
Amor, doce anelo,
o elo
de união, da anti-solidão...
   
    A felicidade... musa
sem idade;
nelas, reclusa...
Regaço, espaço-fronteira
da criança,
o mundo alcança...
   
    Do amor, uma aliança
enfeita a mão
que segura a criança...
Distantes, chegadas,
vivem as duas assim,
enlaçadas...
   
    Vinda e ida...
Nós somos, apenas,
passageiros na vida...

Lóla Prata     

 

O NEGÓCIO É SÉRIO

     Aquele indivíduo, funcionário eficiente, temperamento expansivo, educação fina, sem defesas, sorria para todos. O Público a quem atendiam, não o pertubava, trazia-lhe satisfação, pois aproveitava os contatos, conversava com todos, vivia em paz. O funcionário continuava na mesma toada: de bem com a vida, transmitia serenidade e angariava amigos.
     Menos, a consideração do chefe, que permanecia inconformado. Não era possível! Não compreendia! Atender gente o dia todo, durante meses seguidos e continuar com o sorriso nos lábios, tratando bem a todos, até mesmo aos reconhecidamente chatos (?); devia ser pouco serviço, ajuizava ele. Então, começou a premiar o rapaz com mais atribuições. Quanto mais sorriso, mais serviço.
     Agora, o rapaz só dava conta da papelada, se ficasse fora do horário de expediente. Por um tempo, não reclamou, o salário era bom, então, correspondia da melhor maneira possível.
     Mas, um dia, sua jovem esposa queixou-se da ausência dele no lar, da falta de companhia, pois queria-o ao seu lado para conversas sobre a vida, para lazer e lamentava o horário de seu regresso do trabalho, o que acontecia lá pelas 21 ou 22 horas.
     Ele percebeu que há muito não se distraia, só preocupado com o acúmulo de responsabilidades no escritório. Sentiu o semblante sério e carregado. O espelho da sala lhe revelou raiva, cansaço físico e mental. Cara amarrada. Insatisfação com o ordenado.
     Aí, a triste resolução: pede demissão, não real, mas psicológica, do trabalho. Limitou-se ao essencial. Nunca mais sorriu nos dias da semana.
     Passou a ser feliz apenas aos domingos.

Lóla Prata