Livro

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LÓLA PRATA
e
MARIA EDITH PRATA REAL


O título sugere e realmente é, a continuidade do VIVENDO.  Chega em 1981, em parceria com MARIA EDITH PRATA REAL . As editoras consultadas ainda não se interessaram pelas crônicas, dando as mais variadas desculpas; como o Vivendo, a produção é independente e dispendiosa, exigindo muito esforço, mas foi bem aceito na comunidade de Santos, assim como em Bragança e São José dos Campos.

Inscrito em Concurso Nacional Melhor Livro, promovido pelo Clube Brasileiro de Literatura, Anápolis GO, recebeu um honroso 2o. lugar na categoria Crônicas, 1992, entre mais de cem concorrentes.
Capa do artista plástico Sérgio Prata, aos 18 anos. Ilustrações a cargo dos dons familiares: André, Sérgio e Carlos Maurício.

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A  DESPEDIDA

Todos no ônibus urbano, embarcados e prontos para a jornada. Tudo indicava uma viagem sem novidades: os costumeiros embrulhos das donas de casa, com compras das lojas e os tradicionais jornais sendo lidos pelos homens.  A
costumeira expressão de indiferença nos rostos estranhos dos passageiros; ninguém se importando com ninguém.
A marcha foi engatada e o motor ruidoso pôs o coletivo em movimento.  Daí, começou...
Um primeiro grito excitado de um guri de seus três anos de idade, seguido de palminhas alegres de quem nunca havia "andado" de ônibus; bem pobre, chinelinho de borracha, camisa encardida, mal abotoada e calça ruça e rasgada...
O pai a seu lado, olhava de rabo de olho para todos, com um largo sorriso e poucos dentes na boca.  Também maltrapilho.  Carregava num saco plástico, quatro laranjas e duas bananas.  Deu uma delas ao feliz garotinho que, logo, a devorou e ficou à espera de outra que teve o mesmo fim.  As cascas voaram pela janela e se estatelaram no asfalto.  Animado com o apetite do filho, o pai tirou o canivete do bolso e, cantando alto, descascou a laranja.  O molequinho abocanhou-a com tanta sede, esparramando o suco pelos cantos de sua boca, amarelando queixo, pescoço, mãos e braços.
Rindo, sem tirar a fruta dos dentes, abraçou-se ao pai cantor, dividindo com ele, o caldo da gostoso cítrico.  Muito carinho recebia das mãos grosseiras do pai, que pouco ligava à sujeira que se estendia ao banco e chão do ônibus.
Os demais passageiros, provavelmente, lamentavam a falta de composturra e de educação, assim como os arroubos de amor, fora de hora demonstrados.
A cantoria continuou entre as palmas do pequeno, espirrando as últimas gotas de laranja acumuladas entre os resíduos de banana.
-"Ô, seu motorista !  Seu motorista !", gritou.
-"Fala !", respondeu, no mesmo tom, irritado com o caipira perturbador do sossego.
-"Mostra onde é o ponto do sanatório..."
A mesma voz que cantara, desta vez, falseou e soou como um pedido de socorro:
-"É que meu filhinho tá tuberculoso... e eu vô deixá ele aí no hospital...
volto logo mais pra minha terra !"
O ônibus freou no ponto. O homem, entre grande estardalhaço, levantou o garoto no colo; com a outra, agarrou uma sacola de roupas e as laranjas de sobra.  Saltou.
Os demais o acompanharam com o olhar triste.  Viram ainda o menino abraçado ao pescoço do pai que, naquela hora, fazia silêncio.  Chorava, apenas!

 

EM  PLENA SAÚDE

Ela, com toda razão, lamentava-se pelo falecimento de dois filhos, em acidente.  Homens feitos, saudáveis, bons, honestos, tirados de sua presença tão inesperadamente.
Apesar dos treze filhos, a ausência dos dois a magoava terrivelmente. (Compreendemos ser alta a dose de sofrimento, realmente).
Lamentava-se, dividindo com alguém o sufoco:
-"Pois é, dizia, Deus já me pediu dois filhos e dessa maneira !  Por que Ele permitiu essa amargura ?  Não consigo entender !  Por quê ? "
O netinho ouvia atentamente, apesar de estar brincando e respondeu:
-"Ué, vovó !  Sabe por quê ? Você reza tanto pela saúde dos seus filhos que Deus só pode tirar desse jeito... !"

 

DESCULPE ALGUMA COISA

Último dia de trabalho, início da aposentadoria.  Percorreu com o olhar, os olhares dos colegas, seus subordinados hierárquicos.  Transparecia o medo de perder sua ascendência profissional e a certeza de não contar mais com a
atenção deles, fora dos limites daquela Casa onde trabalhara por trinta e tantos anos.
Pegou a plaquinha onde reluzia, em letras douradas, o próprio nome e a posição que o distinguia e a atirou com raiva, no chão.  Depois, constrangido, apertou a mão de cada um  e a todos dirigiu o "desculpe alguma coisa..."
Foi pouco.  A frase não compensava o tanto de maldade e impessoalidade do relacionamento de tantos dias, meses e anos sob clima de intensa pressão e de menosprezo com os menos graduados.
Acabara-se o tempo de cultivar as amizades; estivera muito ocupado em impressionar o alto escalão administrativo para entrever que seus subordinados eram gente, bem humanos, em vez de máquinas de produtividade.
Acabara-se o tempo; não o consideram mais útil aos interesses do serviço, forçaram-no a se aposentar, dando-lhe um "chega pra lá " direto e cruel, tal e qual a sua peculiar maneira de tratar os outros.
"Desculpe alguma coisa..." era muito pouco. Os colegas nunca o procurariam para um bate-papo, um churrasco ou detalhes
assim, dos que preenchem a vida e os domingos dos trabalhadores, quanto mais de um aposentado.  Talvez, pensamentos como: "já vai tarde", "dá lugar pra outro, piano de cauda", que "bons ventos o levem e não o tragam jamais", tenham passado pela cabeça dos funcionários, mais soltos e tranqüilos com a tão sonhada ausência a partir do dia seguinte, do ex-chefe, ex-carrasco.

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