Livro

O Imperador está chegando !


LÓLA PRATA


R$ 10,00

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A PISCINA

     Afinal, estava resolvido. Compraria uma  piscina de fibra de vidro, com os cruzados liberados! Tinha que aproveitar a boa-vontade dos governantes que devolviam em prestações, o confisco da poupança. Logo após a abertura do Banco, entrou na fila única e, em torno de vinte minutos, conseguiu ser atendido pelo caixa antipático.

- É verdade mesmo, que meu dinheiro seqüestrado está voltando?

Sem resposta, formulou outra pergunta, de modo mais sério e de acordo com a cara fechada do funcionário:

- Por favor, qual o saldo da conta número 04.726.339-xy? Quero adquirir uma piscina para a família se distrair mas antes, vou me certificar da cor do tutu. Sou como São Tomé, sabe?

Continuou o monólogo pois o caixa, calado, se entretinha no manuseio de um baita arquivo.

- Diacho de cidade em que vim parar; sistema bancário arcaico e artesanal... a falada modernidade só chegará na "futuridade", murmurou baixinho.

Enquanto o cliente devaneava, o bancário, impessoal e superior, apresentou-lhe um pedacinho de papel com uma cifra escrita: justamente o montante da primeira parcela do tanque azul onde banharia seu corpo na tranqüilidade e na privacidade do quintal da nova residência.

A família o esperava no carro: a mulher, toda descabelada pela folia das crianças encerradas dentro da condução durante a infindável meia-hora! A poeira saturava o oxigênio e provocava tosse em Huguinho. O nariz de Zezinho, eternamente ranhento, exibia rajadas amarronzadas. Luizinho chiava, com prenúncio de bronquite. O pai reclamou da sujeira do nariz e da cara do Zezinho:

- Como ele consegue ser tão sujo?

- Não implique com o pequeno... , defendeu a mãe.

Os  pneus cantaram na saída brusca, festejados pelos garotos e, entre os "fiquem quietos", "deixem eu conversar com sua  mãe", "vocês vão apanhar", chegaram à loja que expunha as piscinas.

O "show-room" não era em "room", mas ao ar livre, com modelos maravilhosos: retangular,  redonda, oval, com e sem escadinha, com e sem escorregador, funda, rasa, etc. Discutiram, escolheram, desistiram, até que se decidiram por uma grandona, que ocupasse todo o espaço disponível do quintal. A mulher desistiu mentalmente do varal, do corador, das margaridas e açucenas, tudo em prol da futura hidroginástica diária do casal a fim de desgastar a proeminente barriga dos dois quarentões.

Huguinho e Luizinho grasnavam como patos, felizes com a perspectiva de audaciosos mergulhos acompanhados pela turminha  do bairro. Zezinho fungou, excitado, limpando o nariz com o bracinho já engomado por anteriores fungadas.

Selaram o acordo do assentamento da piscina com assinatura do contrato de venda a prazo e na troca de um polpudo cheque por um recibo.

- Amanhã começaremos o buraco no seu quintal!

Os compradores saíram muito alegres: o chefe dirigia automaticamente, antegozando as delícias da água fresca a inundar-lhe o corpo avantajado. A mulher sonhava em tornar-se esbelta com exercícios aquáticos e em se bronzear sob o sol da manhã; as crianças sarariam da tosse, da bronquite e da sujeira do nariz.

- Por que esse menino só fala nadação? É na-ta-ção!

-Pára de irritar o Zezinho; ele tem apenas seis anos... e as fossas nasais entupidas por enormes adenóides...

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A  família tratou de desocupar o terreno: bicicletas, velocípedes e patins, para o canto do quarto; pneus velhos, para o lixo; algumas plantas de chão transplantadas para vasos improvisados, colocados em cima da lavadora de roupas e no peitoril das janelas. A casa do cachorro foi para o jardim e  as gaiolas entulharam a garagem.

Cansadíssimos, ainda dormiram mal, na expectativa do dia seguinte.

Os trabalhadores chegaram cedo, munidos de pás, picaretas e furadeiras possantes, rebocadas por um mini-trator. Começaram a inana, perturbando os vizinhos e atraindo-os às janelas.

- O que vai ser aí?, perguntou o mais curioso.

- Buraco pra piscina!, antecipou o mais comunicativo.

Prosseguiu o barulho intenso de quebra-quebra de partes cimentadas e do tratorzinho transportando o lixo para um terreno baldio no fim da rua. Completavam a orquestração, os latidos do vira-lata inconformado e os gritos da criançada alvoroçada.

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- Meu beem! Benhê! Um homem no portão querendo  falar com vocêêêê...!

- Quem é ?

- Ora, não sei..

Era um homem carrancudo vestindo terno preto tipo luto, aliviado apenas pelo sapato marrom destoante.

- Sou Dr. Augusto, advogado e fiscal de obras da Prefeitura, seu vizinho de fundo. Tenha a bondade de suspender os serviços de seu quintal. Obra embargada! Pois não tem licença, estou certo?

Brandiu no ar três folhas de papel tamanho-ofício, antes de entregá-las ao proprietário atônito.

- Mas, meu amigo...

- Passar bem... a Prefeitura abre às 13 horas!

Com  cara de trouxa, voltou à obra e mostrou os papéis ao empreiteiro que gritou aos companheiros:

- Turma, por hoje é só! Obra embargada pelo Dr. Augusto, o fiscal!

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Dia  seguinte, no Departamento de Obras, esperou de pé que o funcionário despachasse dois munícipes queixosos; depois, que tomasse café com os colegas. Ressentido  com a indelicadeza de quem nem se dignou a oferecer um gole de café, solicitou:

- Você pode me quebrar esse galho?

Os papéis foram examinados, revirados, carimbados e devolvidos ao solicitante:

- Agora é no Departamento de Obras Domiciliares, quatro portas adiante, nesse mesmo corredor, à direita.

- Obrigado!

Os papéis tamanho-ofício se estenderam na mesa da responsável, depois de mais uma irritante espera. Os oculinhos de fazer crochê se acomodavam no rosto da matrona e permitiam que ela examinasse a assinatura do Dr. Augusto.

- Tudo bem...

- Tudo bem? Não preciso de uma licença, um alvará ou coisa que o valha.

- Primeiro, uma vistoria do engenheiro.

- O meu vizinho já viu e não gostou...

- Depois de amanhã, o engenheiro dirá se gosta...

- Depois de amanhã? Não pode ser hoje?

- Hoje, só o técnico.

- E ele pode autorizar?

- Se estiver nos conformes...

- Lógico...

- Uma cerveja para o técnico?, ela sussurrou.

- Lógico, se tudo estiver nos conformes.

- Pode levá-lo no seu carro?

- Lógico...

- Traz de volta?

- Lógico.

- Permita-me uma pergunta: p'ra que piscina em casa?  A cidade tem um ótimo clube...

- Madame, vim para esta cidadezinha em busca de sossego! Estou em licença-saúde: sou piloto comercial, estressado, à beira da loucura e de uma síncope nervosa. Em resumo: sou um perigo! Prefiro piscina particular, se não a incomodo! Além disso, quero limpar o nariz do caçula.

- O que disse?

Ele  nada respondeu e ela não ousou repetir a inquirição.

- Amâncio! Ó Amâncio! Trabalho p'ra você!

Mais carimbos e o técnico juramentado, substituto de engenheiro, foi inspecionar a escavação do buraco. Rodeou, observando o mini-trator estacionado, estalou entre lábios fechados uns enigmáticos tsk, tsk, tsk, e foi sorver o refresco que a dona-de-casa preparara. Um envelope com a cerveja prometida, em forma de notas, fê-lo sorrir e concluir:

- Tudo pronto!

- Não vai me deixar papel nenhum.

- Na Prefeitura, a gente acerta.

- Aquele tal doutor Pen-pen não vai mais me aborrecer?

- Por causa do buraco, não; mas, cuidado; ele é primo do prefeito, sobrinho da madame das Obras Domiciliares, fiscal e advogado recém-formado...

- Querida, telefone ao empreiteiro e diga-lhe que a barra está limpa!

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Os trabalhadores voltaram e atacaram novamente, acom- panhados pela algazarra da meninada desocupada e pela vizinhança próxima. A sujeira se espalhava pelos vãos do lindo bangalô,  provocando chiados no peito de  seus filhos. Zezinho destilava secreções cada vez mais imundas. O buraco cresceu e, por si só, divertiu a petizada, apesar dos pulmões comprometidos.

A tão esperada piscina apareceu, trazida pelo caminhão da firma, amarrada com cabos de aço. Era de um azul-celeste encantador, poético! Provisoriamente, impediu o trânsito da rua, obrigando todo motorista desavisado a dar ré e procurar outro itinerário.

- Surgiu um pequeno problema... ela não vai conseguir entrar, de jeito nenhum! É maior que os espaços laterais de sua casa!, avisou o entregador da mercadoria.

- Meu Deus! (Esse "Meu Deus" soou com blasfêmia, tal a impaciência da entonação de voz do piloto estressado).

- Isso se resolve...

Após confabulações entre empreiteiro, peões, vizinhos, agregados e palpiteiros, o veredicto:

- Vou  requisitar um guindaste de Cruz das Almas. Se lá não puderem, chamo o de Cacha-pregos! Em dois ou três dias, estará aqui e elevará a piscina acima do telhado!

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- Benhê, o homem do Departamento de Trânsito quer falar com você. Dr. Augusto o mandou!

- Já sei, já sei...tenho que comparecer na Prefeitura para explicar sobre esta merda que está impedindo a rua! Querida, mande os meninos saírem do fundo do buraco, faça o favor... e assoe o nariz desse aqui...!

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O guindaste, realmente, impressionou pelo tamanho e pela senilidade; no entanto, era ainda, potente, e foi atrelado pelas experientes e calosas mãos de seu operador à carga preciosa e frágil, feita de fibra de vidro. Os circunstantes prenderam a respiração e o mecanismo rangeu, começando a suspender a bichona azul, devagar.

Aplausos e gritos de satisfação ecoaram, quando ela se elevou a alguns metros do chão.

- Parem! Parem! Ordem Judicial!

Dr. Augusto gritava e babava a sua autoridade:

- O sr. tem licença para sobrevoar o telhado do vizinho? Sou advogado e fiscal! Meu cliente quer garantias e Seguro de Acidentes contra o Patrimônio!

A mulher diagnosticou a apoplexia do marido pela veia inchada do pescoço e correu a buscar o Lorax 2mg., obrigando-o a tomá-lo com um copo de água. Meio engasgado, ele só fazia balbuciar:

- Ainda  pe-go esse cai-pi-ra baba-ca! Advo-gado do dia-bo! Mante-nham es-se pen-telhão lon-ge de mi-im!!!

A turma do vamu-vê berrava, torcendo:

- Peeeega! Peeega!

Os policiais que escoltavam o bacharel encostaram a mão na cartucheira e o gesto funcionou como calmante geral: tudo e todos pararam como estavam.

Apenas a piscina oscilava lentamente no ar.

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A manchete do tablóide bi-semanário exibia, no sábado:

Piscina atrapalha cidade e divide opiniões!

e o texto exortava os leitores:

"Participe, você também, telefonando para a redação, dizendo se a piscina pode ou não sobrevoar o espaço aéreo de outro cidadão!"

A rua, antes calma, transformou-se em atração turística e em passeio obrigatório dos 20.000 habitantes, nos dias subseqüentes. A família ficou famosa e era apontada no açougue e no mercadinho.

No Fórum, algum tempo depois, sob efeito do Lorax acrescido de Capoten 25 mg., a fim de controlar a pressão arterial, mais o Isordil no bolsinho do terno, o piloto enfrentou o Dr. Augusto, o MM Juiz e seu escrivão. As sentenças vieram, conforme as leis: * providenciar seguro do patrimônio do vizinho, *pagar multas pela terra jogada em outro terreno, * regularizar a licença do guindaste, * exigir carteira atualizada de manobrista, do dono do aparelho, * apresentar recibo de quitação antecipada de transação comercial da piscina, * requerer nova vistoria do buraco, desta vez, pelo engenheiro credenciado, * arcar com as custas judiciais processuais,* etc... * etc...

Depois de tudo apresentado e protocolado, sairia o brevê da piscina.

O piloto bi-estressado, nessas alturas, "viajava" sob ação dos medicamentos e sonhava com o sossego a 5.000 pés do chão, segurando o manche do seu 737, com destino à Cochinchina!

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