
Nasceu Maria das Dores destinada a ser Rainha de todos os trovadores, com doce nome: Lilinha. Em vinte e quatro de agosto do século dezenove, aos Fernandes, novo rosto, e a fada Arte se move. No ano noventa e um pelos mil e oitocentos, do céu, a nenê chegou assoprada por bons ventos. E nasceu no Cachambi, na época, a Guanabara, onde estreou, sendo aqui as primícias da tiara. Filha de José Lourenço e Francisca Julieta, chega sob amor intenso para enfeitar o planeta. O seu pai, um lusitano e sua mãe, brasileira. A fada mantinha o plano de fazê-la bem “arteira”. Rede pública, o primário; com a mãe, música e piano, e nesse feliz cenário, sempre havia novo plano. Ou “arteira” ou boa artista, Lilinha seguiu a fada: na vida foi pianista fazendo bela jornada. Valsas, letras de canções, ritmos lentos com requintes, tal mulher com tais moções legou algumas seguintes: “Escravo do Amor”, cantou o Orlando Silva afamado; no Norte, o dom comprovou com “O Beijo Fatal”, de agrado. O Beijo correu Brasil, chegando até Portugal, apaixonado e sutil, espocou lá, surreal. Lembro-me do O Tico-Tico, a revistinha infantil e que a vocês cientifico, marcou dela, trovas mil. Viu Heitor em um sarau e, ouvindo canções que amavam; e sob o élan musical, as vidas se entrelaçavam. Heitor , mais novo que ela, oito anos, imagine, e o tabu se desmantela sem nada que mal termine. Ele preferiu violão ao Colégio Militar e ela deu seu coração ao rapaz tão singular. Outros dons de seu marido: calígrafo e desenhista. O casal, de arte vestido, nos trouxe o futuro à vista. E assim, o clã dos Fernandes se enriquece com Lilinha que trazia dons bem grandes, versos de primeira linha. “Da tua vida a viagem se é triste, o pintor imita, que da mais tosca paisagem faz a tela mais bonita!” Luiz Otávio pesquisava o endereço da escritora que em jornais se reafirmava talentosa trovadora. Da A Gazeta de Vitória localizou a plebeia que em lírica trajetória reinaria... na assembleia. E no Conversa em Família, um programa radiofônico, tinha cada redondilha um som igual ao sinfônico. “Minhas trovas sem beleza, se as dizes, são divinais! Só por isso, com certeza, elas serão imortais.” Lilinha contracenou em doce troca de versos; com Adelmar T. trovou, Luiz Otávio, e diversos. Melodiosas e singelas, Luiz Otávio as definiu, e são mesmo, as janelas de emoções que proferiu. Aparício e Augusta Campos conjuntamente se arrulha em cariocas escampos, onde o talento borbulha. Os Olavos Dutra e Campos, com a bragantina Adalzira foram também pirilampos com quem Lilinha se inspira. E Milton Mendes e Heitor Froes, ao grupo se irmanaram. Todos, com muito fervor, com Lilinha comungaram. Agripino Grieco a leu: - São das melhores as trovas; patrícia ilustre nos deu numa linguagem que inova. Registro Júlia Galeno, também Lola de Oliveira, que em literário terreno edificaram fronteira. Ela exibia a cintura fininha e reveladora, consciente da figura de que era portadora. Mas... pouco usou maquiagem, alguém confidenciou..., já era linda a bagagem da alma que ramificou. Certa vez comprou sapatos iguais, só mudando a cor. E saiu com os insensatos, distraída, sem primor. Avisada, nem ligou, prosseguindo na jornada; rindo de si, continuou e alegrou a caminhada. “Quando tu passas na estrada, dentro de casa adivinho: é teu passo uma toada musicando teu caminho.” Enlutada por Anacaíra, a primogênita do amor, que aos onze anos partira, deixando-lhe cruel dor. “Da morta felicidade guarda a saudade dorida, pois quem tem uma saudade tem muita coisa na vida." Arício, o segundo filho, foi seguido por Alcy que em trova teve brilho, títulos daí e dali. “Minha casa pobre, é rica! Mesmo no escuro tem brilhos; pois o amor a santifica, porque a iluminam meus filhos.” “Meus filhos! ... Minha alegria! Dentro da minha pobreza, nunca pensei ter um dia tão opulenta riqueza!” Lilinha esbanja lirismo em trovas que nos comovem, as envolve de classismo, em linguagem pura e jovem: "Era outro o teu caminho... Quiseste, por gosto, errar. Por que entraste em meu cantinho, se não podias ficar?" Outra tem cunho brejeiro, e a rainha escreve assim, sobre o desejo corriqueiro de nunca ter coisa-ruim. "Ventura é coisa sabida, seja muita, ou seja escassa, se não for interrompida perde a metade da graça." Corresponde à realidade o teor da redondilha? Ou será a felicidade só um tema que dedilha? “Podem subir os felizes! Agarro-me ao solo, em festa. - Se não fossem as raízes, que seria da floresta?” “Feliz nunca fui! Sem crença, procuro a felicidade, como o cego de nascença que quer ver a claridade.” Em setembro, ano sessenta em Congresso Nacional no Grêmio ela se contenta com honra clara e total. Ganhou título real, mas trouxe preocupação: - E se um erro acidental manchasse tal distinção? Redobrou os seus cuidados: nos versos, a medição que, de rimas salpicados, brilhavam em perfeição. Fino romantismo dita todo o teor desta trova: e a redondilha bonita de cadência nos dá prova: "Um pelo outro, passamos, com os olhos fitos no chão... Mas, com que ardor nos olhamos com os olhos do coração!" “Dizem que o amor é feitiço, é mágoa, alegria e dor. - Mas se amor não fosse isso, que graça teria o amor?” Lilinha, a musicista, compôs valsas para as netas e em família, a pianista tocou notas irrequietas. Ariete ainda guarda do presente, a partitura. Sendo neta e felizarda, ouve nas notas, ternura... “Minhas netas, sempre rindo, são meu alegre evangelho. Musgo verde revestindo de esperança, um muro velho.” Também a fada bondosa tornou-a coinventora: de uma ideia harmoniosa, do bandorrino, a gestora. Invenção de seu marido, o bandorrino a seduziu; foi instrumento querido, nele muito produziu. Do instrumento musical que um lutiê concretizou, não nos restou nem sinal, fraca lembrança sobrou. Imagino, pelo nome, um bandolim-violino, mas toda memória some do original bandorrino. Sonetista de primeira, digna de novo compêndio pra destacar a guerreira, mas se evitou o dispêndio. O livro ´Flores Agrestes` surgiu em cinquenta e dois, de sonetos incontestes que encantaram, ora pois. `Contas Perdidas`, de trova, brotou em cinquenta e três, e a poesia a aprova e aplaude com rapidez. A “Vovó dos Trovadores’, outro título outorgado por transmitir seus valores a jovens de aprendizado. ‘Cantigas que só Eu canto’, impresso em sessenta e três, de cem trovas, o recanto foge de antigos clichês. Os sonetilhos terão vista com nome `Appoggiaturas`, a eles não há quem resista, se amarem literatura. Apesar de “mil” sonetos, e compor tantas canções, são famosos os quartetos que despertam emoções. Dizem que desde oito aninhos enveredava na trova, desbravando seus caminhos em palavra sempre nova. Por aqui, o foco é a Trova que ela muito exaltou, leiam, há muitas provas, sobre as quais ela reinou. “Sempre a tristeza se espanta e se amenizam cansaços, tendo trovas na garganta e uma viola nos braços.” “A trova sorri e chora. Possui encanto divino. Criou-a Nossa Senhora pra embalar o Deus-menino.” “Do pomar da poesia, os frutos que você trouxe, coube à trova a primazia por ser menor e mais doce.” “Abelha que o favo prova, é o trovador - velho ou novo fabricando o mel da trova que adoça a boca do povo.” “É a trova, em seu natural, mordaz, alegre ou dolente, lindo trecho musical de quatro notas somente.” “A trova é a alma da gente desventurada ou feliz. Em quatro versos somente, quanta coisa a gente diz!” “Na tua fronte bendita dei um beijo, mãe querida! Foi a trova mais bonita que já fiz em minha vida.” “De ideias velhas ou novas, eu faço trovas também. Quem gosta de fazer trovas, nunca faz mal a ninguém.” “Quisera, de ideia nova de teu amor presa aos laços, fazendo a última trova, morrer feliz em teus braços.” “Trovas são gotas de pranto, contas do terço das vidas, que, transformadas em canto, rolam no mundo, perdidas.” “Pela saudade ferida, minha musa se renova! E eu abro o livro da vida e escrevo nele uma trova.” “Cantas! Minha alma te aprova e eu choro - que coisa louca! querendo ser uma trova para andar em tua boca.” “Se a trova faz suicidas, não sou eu quem a reprova. - Vale uma trova mil vidas! Não vale a vida uma trova!” Sobre rimas, estudemos a douta trova seguinte. Nos conformes, o que lemos? Rima simples foi acinte? “Para rimar com teu nome, que é do céu a obra-prima, mãe, não existe um vocábulo! Nem mesmo Deus achou rima”. O tempo passa ligeiro... ela, viúva e saudosa, foi apagando o luzeiro de uma vida auspiciosa. Desconhecendo a família, os amigos e seus dons, vai terminando a vigília, calando pra sempre os sons. “Vida e morte vão andando no mesmo campo a lutar. A primeira semeando, para a segunda ceifar.” Foi pertinho dos noventa, quando acordou para o eterno; seu legado nos sustenta, grafado em simples caderno. O dia oito de junho dos anos oitenta e um encerra o seu testemunho em arte sobrecomum. Mas as trovas sobrevivem no acervo dos corações e pela UBT revivem encantando as gerações. “Irá comigo ao jazigo a trova singela e pura. Se é um mal, nasceu comigo: mal congênito e sem cura.”