
O Imperador está chegando! (1999)

Reuni contos, alguns já premiados em concursos literários. Ficção... apenas ficção. Na verdade, com uma ponta de inspiração na vida. Sempre aumentando "um ponto..."
Aí está meu sétimo livro.
1999.
Um conto do livro:
A PISCINA
Afinal, estava resolvido. Compraria uma piscina de fibra de vidro, com os cruzados liberados! Tinha que aproveitar a boa-vontade dos governantes que devolviam em prestações, o confisco da poupança. Logo após a abertura do Banco, entrou na fila única e, em torno de vinte minutos, conseguiu ser atendido pelo caixa antipático.
- É verdade mesmo, que meu dinheiro seqüestrado está voltando?
Sem resposta, formulou outra pergunta, de modo mais sério e de acordo com a cara fechada do funcionário:
- Por favor, qual o saldo da conta número 04.726.339-xy? Quero adquirir uma piscina para a família se distrair mas antes, vou me certificar da cor do tutu. Sou como São Tomé, sabe?
Continuou o monólogo pois o caixa, calado, se entretinha no manuseio de um baita arquivo.
- Diacho de cidade em que vim parar; sistema bancário arcaico e artesanal... a falada modernidade só chegará na "futuridade", murmurou baixinho.
Enquanto o cliente devaneava, o bancário, impessoal e superior, apresentou-lhe um pedacinho de papel com uma cifra escrita: justamente o montante da primeira parcela do tanque azul onde banharia seu corpo na tranqüilidade e na privacidade do quintal da nova residência.
A família o esperava no carro: a mulher, toda descabelada pela folia das crianças encerradas dentro da condução durante a infindável meia-hora! A poeira saturava o oxigênio e provocava tosse em Huguinho. O nariz de Zezinho, eternamente ranhento, exibia rajadas amarronzadas. Luizinho chiava, com prenúncio de bronquite. O pai reclamou da sujeira do nariz e da cara do Zezinho:
- Como ele consegue ser tão sujo?
- Não implique com o pequeno... , defendeu a mãe.
Os pneus cantaram na saída brusca, festejados pelos garotos e, entre os "fiquem quietos", "deixem eu conversar com sua mãe", "vocês vão apanhar", chegaram à loja que expunha as piscinas.
O "show-room" não era em "room", mas ao ar livre, com modelos maravilhosos: retangular, redonda, oval, com e sem escadinha, com e sem escorregador, funda, rasa, etc. Discutiram, escolheram, desistiram, até que se decidiram por uma grandona, que ocupasse todo o espaço disponível do quintal. A mulher desistiu mentalmente do varal, do corador, das margaridas e açucenas, tudo em prol da futura hidroginástica diária do casal a fim de desgastar a proeminente barriga dos dois quarentões.
Huguinho e Luizinho grasnavam como patos, felizes com a perspectiva de audaciosos mergulhos acompanhados pela turminha do bairro. Zezinho fungou, excitado, limpando o nariz com o bracinho já engomado por anteriores fungadas.
Selaram o acordo do assentamento da piscina com assinatura do contrato de venda a prazo e na troca de um polpudo cheque por um recibo.
- Amanhã começaremos o buraco no seu quintal!
Os compradores saíram muito alegres: o chefe dirigia automaticamente, antegozando as delícias da água fresca a inundar-lhe o corpo avantajado. A mulher sonhava em tornar-se esbelta com exercícios aquáticos e em se bronzear sob o sol da manhã; as crianças sarariam da tosse, da bronquite e da sujeira do nariz.
- Por que esse menino só fala nadação? É na-ta-ção!
-Pára de irritar o Zezinho; ele tem apenas seis anos... e as fossas nasais entupidas por enormes adenóides...
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A família tratou de desocupar o terreno: bicicletas, velocípedes e patins, para o canto do quarto; pneus velhos, para o lixo; algumas plantas de chão transplantadas para vasos improvisados, colocados em cima da lavadora de roupas e no peitoril das janelas. A casa do cachorro foi para o jardim e as gaiolas entulharam a garagem.
Cansadíssimos, ainda dormiram mal, na expectativa do dia seguinte.
Os trabalhadores chegaram cedo, munidos de pás, picaretas e furadeiras possantes, rebocadas por um mini-trator. Começaram a inana, perturbando os vizinhos e atraindo-os às janelas.
- O que vai ser aí?, perguntou o mais curioso.
- Buraco pra piscina!, antecipou o mais comunicativo.
Prosseguiu o barulho intenso de quebra-quebra de partes cimentadas e do tratorzinho transportando o lixo para um terreno baldio no fim da rua. Completavam a orquestração, os latidos do vira-lata inconformado e os gritos da criançada alvoroçada.
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- Meu beem! Benhê! Um homem no portão querendo falar com vocêêêê...!
- Quem é ?
- Ora, não sei..
Era um homem carrancudo vestindo terno preto tipo luto, aliviado apenas pelo sapato marrom destoante.
- Sou Dr. Augusto, advogado e fiscal de obras da Prefeitura, seu vizinho de fundo. Tenha a bondade de suspender os serviços de seu quintal. Obra embargada! Pois não tem licença, estou certo?
Brandiu no ar três folhas de papel tamanho-ofício, antes de entregá-las ao proprietário atônito.
- Mas, meu amigo...
- Passar bem... a Prefeitura abre às 13 horas!
Com cara de trouxa, voltou à obra e mostrou os papéis ao empreiteiro que gritou aos companheiros:
- Turma, por hoje é só! Obra embargada pelo Dr. Augusto, o fiscal!
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Dia seguinte, no Departamento de Obras, esperou de pé que o funcionário despachasse dois munícipes queixosos; depois, que tomasse café com os colegas. Ressentido com a indelicadeza de quem nem se dignou a oferecer um gole de café, solicitou:
- Você pode me quebrar esse galho?
Os papéis foram examinados, revirados, carimbados e devolvidos ao solicitante:
- Agora é no Departamento de Obras Domiciliares, quatro portas adiante, nesse mesmo corredor, à direita.
- Obrigado!
Os papéis tamanho-ofício se estenderam na mesa da responsável, depois de mais uma irritante espera. Os oculinhos de fazer crochê se acomodavam no rosto da matrona e permitiam que ela examinasse a assinatura do Dr. Augusto.
- Tudo bem...
- Tudo bem? Não preciso de uma licença, um alvará ou coisa que o valha.
- Primeiro, uma vistoria do engenheiro.
- O meu vizinho já viu e não gostou...
- Depois de amanhã, o engenheiro dirá se gosta...
- Depois de amanhã? Não pode ser hoje?
- Hoje, só o técnico.
- E ele pode autorizar?
- Se estiver nos conformes...
- Lógico...
- Uma cerveja para o técnico?, ela sussurrou.
- Lógico, se tudo estiver nos conformes.
- Pode levá-lo no seu carro?
- Lógico...
- Traz de volta?
- Lógico.
- Permita-me uma pergunta: p'ra que piscina em casa? A cidade tem um ótimo clube...
- Madame, vim para esta cidadezinha em busca de sossego! Estou em licença-saúde: sou piloto comercial, estressado, à beira da loucura e de uma síncope nervosa. Em resumo: sou um perigo! Prefiro piscina particular, se não a incomodo! Além disso, quero limpar o nariz do caçula.
- O que disse?
Ele nada respondeu e ela não ousou repetir a inquirição.
- Amâncio! Ó Amâncio! Trabalho p'ra você!
Mais carimbos e o técnico juramentado, substituto de engenheiro, foi inspecionar a escavação do buraco. Rodeou, observando o mini-trator estacionado, estalou entre lábios fechados uns enigmáticos tsk, tsk, tsk, e foi sorver o refresco que a dona-de-casa preparara. Um envelope com a cerveja prometida, em forma de notas, fê-lo sorrir e concluir:
- Tudo pronto!
- Não vai me deixar papel nenhum.
- Na Prefeitura, a gente acerta.
- Aquele tal doutor Pen-pen não vai mais me aborrecer?
- Por causa do buraco, não; mas, cuidado; ele é primo do prefeito, sobrinho da madame das Obras Domiciliares, fiscal e advogado recém-formado...
- Querida, telefone ao empreiteiro e diga-lhe que a barra está limpa!
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Os trabalhadores voltaram e atacaram novamente, acom- panhados pela algazarra da meninada desocupada e pela vizinhança próxima. A sujeira se espalhava pelos vãos do lindo bangalô, provocando chiados no peito de seus filhos. Zezinho destilava secreções cada vez mais imundas. O buraco cresceu e, por si só, divertiu a petizada, apesar dos pulmões comprometidos.
A tão esperada piscina apareceu, trazida pelo caminhão da firma, amarrada com cabos de aço. Era de um azul-celeste encantador, poético! Provisoriamente, impediu o trânsito da rua, obrigando todo motorista desavisado a dar ré e procurar outro itinerário.
- Surgiu um pequeno problema... ela não vai conseguir entrar, de jeito nenhum! É maior que os espaços laterais de sua casa!, avisou o entregador da mercadoria.
- Meu Deus! (Esse "Meu Deus" soou com blasfêmia, tal a impaciência da entonação de voz do piloto estressado).
- Isso se resolve...
Após confabulações entre empreiteiro, peões, vizinhos, agregados e palpiteiros, o veredicto:
- Vou requisitar um guindaste de Cruz das Almas. Se lá não puderem, chamo o de Cacha-pregos! Em dois ou três dias, estará aqui e elevará a piscina acima do telhado!
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- Benhê, o homem do Departamento de Trânsito quer falar com você. Dr. Augusto o mandou!
- Já sei, já sei...tenho que comparecer na Prefeitura para explicar sobre esta merda que está impedindo a rua! Querida, mande os meninos saírem do fundo do buraco, faça o favor... e assoe o nariz desse aqui...!
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O guindaste, realmente, impressionou pelo tamanho e pela senilidade; no entanto, era ainda, potente, e foi atrelado pelas experientes e calosas mãos de seu operador à carga preciosa e frágil, feita de fibra de vidro. Os circunstantes prenderam a respiração e o mecanismo rangeu, começando a suspender a bichona azul, devagar.
Aplausos e gritos de satisfação ecoaram, quando ela se elevou a alguns metros do chão.
- Parem! Parem! Ordem Judicial!
Dr. Augusto gritava e babava a sua autoridade:
- O sr. tem licença para sobrevoar o telhado do vizinho? Sou advogado e fiscal! Meu cliente quer garantias e Seguro de Acidentes contra o Patrimônio!
A mulher diagnosticou a apoplexia do marido pela veia inchada do pescoço e correu a buscar o Lorax 2mg., obrigando-o a tomá-lo com um copo de água. Meio engasgado, ele só fazia balbuciar:
- Ainda pe-go esse cai-pi-ra baba-ca! Advo-gado do dia-bo! Mante-nham es-se pen-telhão lon-ge de mi-im!!!
A turma do vamu-vê berrava, torcendo:
- Peeeega! Peeega!
Os policiais que escoltavam o bacharel encostaram a mão na cartucheira e o gesto funcionou como calmante geral: tudo e todos pararam como estavam.
Apenas a piscina oscilava lentamente no ar.
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A manchete do tablóide bi-semanário exibia, no sábado:
Piscina atrapalha cidade e divide opiniões!
e o texto exortava os leitores:
"Participe, você também, telefonando para a redação, dizendo se a piscina pode ou não sobrevoar o espaço aéreo de outro cidadão!"
A rua, antes calma, transformou-se em atração turística e em passeio obrigatório dos 20.000 habitantes, nos dias subseqüentes. A família ficou famosa e era apontada no açougue e no mercadinho.
No Fórum, algum tempo depois, sob efeito do Lorax acrescido de Capoten 25 mg., a fim de controlar a pressão arterial, mais o Isordil no bolsinho do terno, o piloto enfrentou o Dr. Augusto, o MM Juiz e seu escrivão. As sentenças vieram, conforme as leis: * providenciar seguro do patrimônio do vizinho, *pagar multas pela terra jogada em outro terreno, * regularizar a licença do guindaste, * exigir carteira atualizada de manobrista, do dono do aparelho, * apresentar recibo de quitação antecipada de transação comercial da piscina, * requerer nova vistoria do buraco, desta vez, pelo engenheiro credenciado, * arcar com as custas judiciais processuais,* etc... * etc...
Depois de tudo apresentado e protocolado, sairia o brevê da piscina.
O piloto bi-estressado, nessas alturas, "viajava" sob ação dos medicamentos e sonhava com o sossego a 5.000 pés do chão, segurando o manche do seu 737, com destino à Cochinchina!